Publicado em: 24/05/2022 09:50:00
Os debates que precedem o próximo Sínodo frequentemente mencionam o fenômeno do clericalismo como o obstáculo por excelência que a Igreja deverá superar. O clericalismo é classificado com um desvio da identidade original dos ministros da Igreja. Uma deformação causada pelo exagero das prerrogativas da missão do clero. Por isso, convém considerar alguns elementos da nossa história, capazes de esclarecer um pouco mais essa questão.
O termo grego kléros - de onde vem clero e clérigo - designa herança, sorte ou parte que coube a alguém por sorteio. Aparece duas vezes no Novo Testamento: Atos 1,17 (escolha de Matias) significando a participação no serviço do apostolado e 1 Pedro 5,3 onde designa o serviço de pastoreio na comunidade cristã. Os teólogos Orígenes (185-253) e Tertuliano (160-220) usaram esse termo para diferenciar os servidores da Igreja dos demais membros, sendo que este significado acabou se impondo.
A partir do século III iniciou-se na Igreja um notável processo de clericalização que, ao longo do tempo, determinou uma clara diferenciação entre clero e leigos e adquiriu formas de estrutura jurídica. No século IV, com o reconhecimento oficial da Igreja cristã pelo império romano (e depois pelos outros impérios e reinos), o clero recebeu um estatuto próprio, tornando seus membros cidadãos distintos do resto do povo e dotando-os de uma dignidade específica (privilégios, dispensas e leis particulares).
A separação entre clérigos e leigos foi ainda mais reforçada quando se exigiu deles um estilo de vida ascético, o celibato, e um código moral específico. O Clericalismo e Sinodalidade fato da ordenação concedeu-lhes um verdadeiro poder sobre os demais fiéis e centralizou nos ministros ordenados não só a celebração dos sacramentos, mas até as mínimas questões práticas da vida eclesial.
Em 1140, o Decreto de Graciano confirmou, de forma jurídica e determinante, uma estrutura bipolar para a Igreja, ao falar de duas classes de cristãos (duo genera christianorum): os clérigos, dedicados ao serviço divino e alheios às realidades temporais (ao menos teoricamente), e os leigos, que vivem no ambiente do mundo. Um dos efeitos dessa distinção jurídica foi uma tal apropriação clerical da eclesialidade, a ponto de se identificar a Igreja quase que somente com o clero. Os clérigos praticamente se tornaram os únicos portadores e protagonistas da ação eclesial. Aos leigos cumpria assistir, apoiar e coadjuvar quando convocados.
De certa forma, o Código de Direito Canônico de 1917 sancionou essa concepção ao considerar os clérigos como os únicos sujeitos de potestade na Igreja (Cân.118), ao mesmo tempo que lhes impôs uma série de obrigações e proibições que confirmavam a sua distinção dos demais membros da Igreja (Cân.119-144).
O Concílio Vaticano II (1962-1965) operou uma reviravolta nesse esquema ao enfatizar um elemento da mais antiga Tradição: a afirmação de que clérigos e leigos compartilham a mesma condição fundamental de batizados e possuem a mesma dignidade de membros do Povo de Deus. O Concílio não enfatizou a clássica diferenciação e oposição, mas acentuou a igualdade básica que existe entre todos os membros da comunidade eclesial (LG 9-13). O mesmo Concílio iniciou uma crítica à redução do ministério ordenado à gestão sacral das necessidades religiosas (culto, piedade, administração de bens eclesiásticos) e abriu novos horizontes e lugares de presença: a atenção e o serviço aos pobres e marginalizados, o diálogo com os não-crentes, a inserção social e a encarnação do ministério em realidades desafiantes (PO 3,9,22).
O teólogo Juan José Tamayo afirmou que “é inegável a vontade de reforma do estatuto dos clérigos por parte do Vaticano II, mas essa vontade de reforma ficou no papel e não se fez realidade. Por quê? A razão última do fracasso há de ser buscada na indecisão e na ambiguidade do decreto conciliar sobre os sacerdotes (Presbyterorum Ordinis), aferrado à teologia pós-tridentina do sacramento da Ordem”.
A tendência de numerosos teólogos pós-conciliares caminhou na linha de uma desclericalização da Igreja que implique concretamente na superação da rígida diferenciação entre clero e laicato (com evidente centralização no clero), ainda intacta e operante, apesar das atenuações que recebeu. Diante da longeva bipolaridade clero-laicato, esses teólogos e pastoralistas propõem a reconfiguração da Igreja em torno do binômio comunidade-ministérios. É esse caminho que o Papa Francisco reabriu, com todos os seus riscos e possibilidades.
Mons. Luiz Antônio R. Costa - Vigário Geral e Pároco da Paróquia Santo Antônio, em Itaverava (MG). Publicado no Jornal Pastoral Abril/Maio 2022.
Fonte: Jornal Pastoral - Abril/Maio 2022
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