Publicado em: 12/02/2024 18:46:00
Eis a entrevista.
Santidade, o mundo está no meio da "guerra mundial aos pedaços" sobre a qual o senhor havia alertado anos atrás…
Não me cansarei de reiterar o meu apelo, dirigido em particular aos que têm responsabilidades políticas: parem imediatamente as bombas e os mísseis, acabem com as atitudes hostis. Em todos os lugares. A guerra é sempre e somente uma derrota. Para todos. Os únicos que ganham são os fabricantes e traficantes de armas. É urgentemente necessário um cessar-fogo global: não estamos percebendo, ou fingindo não ver, que estamos à beira do abismo.
Existe uma “guerra justa”?
Precisamos distinguir e ter muito cuidado com os termos. Se ladrões entram em sua casa com a intenção de roubar e agredir, você se defende. Mas não gosto de chamar essa reação de ‘guerra justa’, porque é uma definição que pode ser instrumentalizada. É justo e legítimo defender-se, isso sim. Mas, por favor, falemos de legítima defesa, para evitar justificar as guerras, que são sempre erradas.
Como você descreve a situação em Israel e na Palestina?
Agora o conflito está dramaticamente se ampliando. Havia o acordo de Oslo, tão claro, com a solução de dois Estados. Enquanto esse acordo não for aplicado, a verdadeira paz permanece distante.
O que o senhor mais teme?
A escalada militar. O conflito pode piorar ainda mais as tensões e as violências que já marcam o planeta. Mas, ao mesmo tempo, neste momento estou cultivando um pouco de esperança, porque estão sendo realizadas reuniões reservadas para tentar chegar a um acordo. Uma trégua já seria um bom resultado.
Como está agindo a Santa Sé nesta fase dos confrontos no Oriente Médio?
Uma figura crucial é o Cardeal Pierbattista Pizzaballa, Patriarca de Jerusalém dos Latinos. Ele é muito bom. Ele se movimenta bem. Está tentando com determinação mediar. Os cristãos e as pessoas de Gaza – não me refiro ao Hamas – têm direito à paz. Eu faço diariamente uma vídeochamada para a paróquia de Gaza, nos vemos na tela do Zoom, converso com as pessoas. Há 600 pessoas lá na paróquia. Elas continuam suas vidas encarando a morte todos os dias. E além disso, a outra prioridade é sempre a libertação dos reféns israelenses.
E como está procedendo a diplomacia do Vaticano no conflito na Ucrânia?
Entreguei a tarefa dessa complicada e delicada missão ao cardeal Matteo Zuppi, presidente da Conferência Episcopal Italiana: ele é capacitado e tem experiência, está realizando um trabalho diplomático constante e paciente para pôr de lado as conflitualidades e construir um clima de reconciliação. Ele foi para Kiev e Moscou, e depois para Washington e Pequim. A Santa Sé está tentando mediar a troca de prisioneiros e o regresso de civis ucranianos. Em particular, estamos trabalhando com a Sra. Maria Llova-Belova, a Comissária russa para os Direitos da Criança, no repatriamento das crianças ucranianas levadas à força para a Rússia. Algumas já voltaram para as suas famílias.
Quais são os pilares sobre os quais construir a paz mundial?
Diálogo. Diálogo. Diálogo. E a busca do espírito de solidariedade e de fraternidade humana. Não podemos mais nos matar entre irmãos e irmãs! Não faz sentido!.
O senhor sempre convida à oração: quanto é importante e pode impactar enquanto o mundo queima?
A oração não é abstrata! É uma luta com o Senhor para que nos dê algo. A oração é concreta. E forte e incisiva. A oração é importante! Porque prepara o caminho para uma pacificação, bate à porta do coração de Deus para que ilumine e conduza o homem à paz. A paz é um dom que Deus pode nos dar mesmo quando parece que a guerra esteja prevalecendo inexoravelmente. É por isso que insisto em todas as ocasiões: devemos rezar pela paz.
Dia 31 de janeiro é a festa de Dom João Bosco, “o Santo dos jovens”: o que ele pode ensinar ainda hoje?
Parece que Dom Bosco certa vez disse ‘Se vocês querem ter e ajudar os jovens, joguem uma bola na rua’. O fundador dos Salesianos e das Filhas de Maria Auxiliadora foi capaz de chamar, envolver e entusiasmar as crianças sem futuro e dar-lhes um futuro. Como? Com as escolas dominicais. Ali os jovens brincavam, rezavam e aprendiam. Para milhares de crianças abandonadas, desesperadas, destinadas a uma existência de dificuldades e de exclusão, Dom Bosco traçou o caminho para um futuro de dignidade e de esperança. Forneceu-lhes as ferramentas intelectuais e espirituais para superar obstáculos e valorizar as suas vidas.
E conseguiu, apesar dos ataques ferozes: não esqueçamos que o Santo de Valdocco viveu na época do Piemonte maçônico e avesso aos padres, e naquele ambiente hostil foi capaz de transformar para melhor a atitude social da região em relação aos jovens. Dom Bosco mudou um pouco a história. Mesmo com reflexões culturais. E também com conversas com aqueles que se opunham a ele.
Em Lisboa, no verão passado, perante milhões de jovens, o senhor gritou com força que a Igreja é para "todos, todos todos": tornar a Igreja aberta a todos é o grande desafio do seu pontificado?
É a chave de leitura de Jesus: Cristo chama todos para dentro. Todos. Há, de fato, uma parábola: aquela do banquete de casamento em que ninguém aparece, e então o rei manda os servos ‘para às saídas dos caminhos e convidais para as bodas todos os que encontrardes’. O Filho de Deus quer deixar claro que não quer um grupo seleto, uma elite. Aí talvez alguém entre ‘por baixo dos panos’, mas nesse caso já é Deus quem cuida dele, quem indica o caminho. Quando me perguntam: ‘Mas podem entrar também essas pessoas que estão em uma situação moral tão inoportuna?’, eu garanto: ‘Todos, o Senhor disse isso’. Recebo perguntas como essa especialmente nos últimos tempos, depois de algumas das minhas decisões....
Em particular a bênção dos “casais irregulares e do mesmo sexo”...
Eles me perguntam por quê. Eu respondo: o Evangelho é para santificar a todos. Claro, desde que haja boa vontade. E é necessário dar instruções precisas sobre a vida cristã (sublinho que não é a união que é abençoada, mas as pessoas). Mas somos todos pecadores: por que então fazer uma lista de pecadores que podem entrar na Igreja e uma lista de pecadores que não podem estar na Igreja? Isso não é Evangelho.
Durante a assistidíssima entrevista televisiva com Fabio Fazio no programa Che Tempo Che Fa, o senhor falou sobre o preço da solidão que tem que pagar depois de um passo como esse: como está vivenciando o clamor daqueles que se rebelam?
Aqueles que protestam veementemente pertencem a pequenos grupos ideológicos. Um caso especial são os africanos: para eles a homossexualidade é algo ‘ruim’ do ponto de vista cultural, não a toleram. Mas, em geral, confio que gradualmente todos serão tranquilizados pelo espírito da declaração “Fiducia supplicans” do Dicastério para a Doutrina da Fé: quer incluir, não dividir. Convida a acolher e depois a confiar as pessoas e a confiar-se a Deus.
O senhor sofre de solidão?
A solidão é variável como a primavera: naquela estação você pode passar um dia lindo, com sol, céu azul e uma brisa agradável; 24 horas depois talvez o tempo mude e se sinta triste. Todos vivemos solidões. Quem diz ‘Não sei o que é solidão’ é uma pessoa a quem está faltando algo. Quando me sinto sozinho, antes de tudo rezo. E quando percebo tensões ao meu redor, procuro com calma estabelecer diálogos e trocas de opiniões. Mas sigo em frente, dia após dia.
Teme um cisma?
Não. Sempre na Igreja houve pequenos grupos que expressavam opiniões de viés cismático... devemos deixá-los fazer e passar... e olhar para frente.
Estamos no início de uma nova era marcada pela Inteligência Artificial: quais são as suas esperanças e preocupações?
Qualquer novidade científica e tecnológica deve ter carácter humano e permitir aos seres humanos permanecer plenamente humanos. Se for perdido o caráter humano, se perde a humanidade. Na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais escrevi: ‘Nesta época que corre o risco de ser rica em tecnologia e pobre em humanidade, a nossa reflexão só pode partir do coração humano’. A Inteligência Artificial é um bom avanço que pode resolver muitos problemas, mas potencialmente, se gerida sem ética, também pode causar muitos danos ao ser humano. O objetivo a estabelecer é que a Inteligência Artificial esteja sempre em harmonia com a dignidade da pessoa. Se não houver essa harmonia, será um suicídio.
Deus ainda encontrará um lugar entre os robôs?
Deus está sempre presente. Ele dá um jeito. Ele está sempre perto de nós, pronto para nos ajudar, mesmo quando não percebemos. Mesmo quando não procuramos. Mesmo quando não queremos. E se ele vê que as derivas estão desenfreadas, ele se faz ouvir. Nos seus modos, que superam tudo e todos.
Como está a sua saúde?
Há algumas dores, mas agora está melhor, estou bem.
Incomoda lhe ouvir sobre sua possível renúncia a cada acesso de tosse?
Não, porque a renúncia é uma possibilidade para todo pontífice. Mas não penso nisso agora. Não me inquieta. Se e quando eu não aguentar mais, eventualmente começarei a pensar nisso. E orar sobre isso.
Quais poderiam ser as suas viagens em 2024?
Uma à Bélgica. Outra a Timor Leste, Papua Nova Guiné e Indonésia em agosto. Depois há a hipótese da Argentina, que por enquanto mantenho ‘entre parênteses’: a organização da visita ainda não começou. Quanto à Itália, irei a Verona em maio e a Trieste em julho.
O novo presidente argentino, Javier Milei, o atacou diversas vezes e com veemência nos últimos meses: se sentiu ofendido?
Não. As palavras na campanha eleitoral vêm e vão.
Irá se encontrar com ele?
Sim. No dia 11 de fevereiro virá para a canonização de ‘Mama Antula’, fundadora da Casa para os Exercícios Espirituais de Buenos Aires. Antes das canonizações costuma-se cumprimentar as autoridades na sacristia. E sei que pediu um encontro comigo: eu aceitei, e então nos veremos. E estou pronto para iniciar um diálogo – palavra e escuta – com ele. Como com todos.
Por que você instituiu o Dia Mundial das Crianças?
Porque estava faltando. Eu senti a necessidade disso. Em novembro realizamos aquele encontro com milhares de crianças e garotos que vieram de todo o planeta à “Sala Paulo VI”: foi muito bom. O primeiro dia oficial acontecerá nos dias 25 e 26 de maio em Roma. O objetivo é inspirar meditações e ações para responder às questões: ‘Que mundo queremos deixar às crianças que estão crescendo? Com que perspectivas?’. Se as ouvirmos e as observarmos, as crianças são professoras de vida para nós, adultos e idosos, porque são puras, genuínas e espontâneas. Cada comportamento delas, mesmo o mais complicado e aparentemente indecifrável, é uma lição. Se nos empenharmos para o bem delas, faremos o bem para nós mesmos. E para toda a humanidade.
Qual é o seu sonho para a Igreja que virá?
Seguir a bela definição da ‘Dei Verbum’, a constituição dogmática do Concílio Vaticano II: “Dei Verbum religiose audiens et fidenter proclamans”, escutar religiosamente a Palavra de Deus e proclamá-la com firme confiança e com força. Sonho com uma Igreja que saiba estar próxima das pessoas na concretude, nas nuances e nas asperezas da vida cotidiana. Continuo pensando no que disse nas Congregações Gerais, nas reuniões dos cardeais que precedem o Conclave: ‘A Igreja é chamada a sair de si mesma e dirigir-se para as periferias, não só aquelas geográficas, mas também aquelas existenciais: aquelas do mistério do pecado, da dor, da injustiça, aquelas da ignorância e da ausência de fé, aquelas do pensamento, de toda forma de miséria.
O que lembra dos dias históricos de março de onze anos atrás?
Depois do meu discurso houve um aplauso, sem precedentes em tal contexto. Mas eu absolutamente não tinha intuído o que muitos mais tarde me revelariam: aquele discurso foi a minha ‘condenação’ (sorri, ndr). Quando eu estava saindo da ‘Sala do Sínodo’ um cardeal de língua inglesa me viu e exclamou: ‘O que você disse é lindo! Lindo. Lindo. Precisamos de um Papa como você!’. Mas não tinha percebido a campanha que estava nascendo para me eleger. Até o almoço de 13 de março, aqui na Casa Santa Marta, poucas horas antes da votação decisiva. Enquanto comíamos, me fizeram duas ou três perguntas ‘suspeitas’... Aí na minha cabeça comecei a pensar: ‘Alguma coisa estranha está acontecendo aqui...’. Mas ainda assim consegui fazer uma sesta. E quando me elegeram tive uma surpreendente sensação de paz dentro de mim.
E como se sente hoje?
Sinto-me um pároco. De uma paróquia muito grande, planetária, claro, mas gosto de manter o espírito de pároco. E estar entre as pessoas. Onde sempre encontro Deus.
A entrevista com o Papa Francisco é de Domenico Agasso, publicada por La Stampa, 29-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Fonte: PASCOM
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