Pe. Geraldo Martins

Chamados a cuidar do jardim de todos

Encontro com candidatos e candidatas a vereadores/as de Viçosa Viçosa – 11 de setembro de 2024


Pe. Geraldo Martins[1]

“Aquele que quiser tornar-se grande entre vocês seja aquele que serve, e o que quiser ser o primeiro dentre vocês, seja o servo de vocês” (Mt 20,26-27)

Prezadas candidatas, prezados candidatos,

Ao saudá-los, quero, antes de tudo, em nome das quatro paróquias de Viçosa e da Capelania da Universidade Federal de Viçosa, agradecer-lhes por terem aceito nosso convite para esse encontro fraterno cujo objetivo é apresentar-lhes, ainda que brevemente, o pensamento da Igreja sobre a “Política melhor” como contribuição para que a campanha eleitoral favoreça o fortalecimento da democracia e da cidadania em nosso município.

Desejo, ainda, parabenizá-los pela coragem de colocarem o nome de vocês para a apreciação dos eleitores e eleitoras que têm o indeclinável dever de escolher, no próximo dia 6 de outubro, aquelas e aqueles que haverão de ocupar o parlamento municipal com a responsabilidade irrenunciável de fazer a Política melhor.

Permito-me abrir nossa reflexão com um pensamento do Concílio Vaticano II que, na Gaudium et Spes, assim se refere sobre a importância e a necessidade da política na organização da sociedade:

"Os indivíduos, as famílias e os diferentes grupos que constituem a sociedade civil, têm consciência da própria insuficiência para realizar uma vida plenamente humana e percebem a necessidade de uma comunidade mais ampla, no seio da qual todos conjuguem diariamente as próprias forças para cada vez melhor promoverem o bem comum. E por esta razão constituem, segundo diversas formas, a comunidade política. A comunidade política existe, portanto, em vista do bem comum; nele encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu direito natural e próprio. Quanto ao bem comum, ele compreende o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição" (GS 74).

Por buscar também o bem comum, a Igreja compreende que, entre ela e a comunidade política, o que deve prevalecer é a autonomia de ambas sem que isso crie muros ou objeções à cooperação que deve existir entre elas dado que têm objetivos comuns quais sejam o bem comum e a dignidade da pessoa humana.

Diz, ainda, o Concílio:

"No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e autônomas. Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo igualmente em conta as circunstâncias de lugar e tempo. Porque o homem não se limita à ordem temporal somente; vivendo na história humana, fundada sobre o amor do Redentor, ela contribui para que se difundam mais amplamente, nas nações e entre as nações, a justiça e a caridade. Pregando a verdade evangélica e iluminando com a sua doutrina e o testemunho dos cristãos todos os campos da atividade humana, ela respeita e promove também a liberdade e responsabilidade política dos cidadãos" (GS 76).

Feita essa breve introdução, gostaria de recordar-lhes que a política faz parte da vida humana. Somos todos seres políticos e não há como fugir disso. Cada um de nós pratica a política segundo a vocação que lhe é própria. Sim, a política também é vocação e só cumprirá sua missão se assim for vivida. Ao se apresentarem para concorrerem ao legislativo municipal, as senhoras e os senhores revelam sua vocação política na militância partidária e na busca do poder com vistas a buscar o bem comum na esfera que lhes é própria.

O educador, escritor e teólogo presbiteriano Rubem Alves assim se refere à política como vocação no artigo “Sobre política e jardinagem”, publicado na Folha de São Paulo em maio de 2000[2]:

"De todas as vocações, a política é a mais nobre. (...) Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um "fazer". 

'Política' vem de 'polis', cidade. A cidade era, para os gregos, um espaço seguro, ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade. O político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação política, assim, estaria a serviço da felicidade dos moradores da cidade.

Talvez por terem sido nômades no deserto, os hebreus não sonhavam com cidades; sonhavam com jardins. Quem mora no deserto sonha com oásis. Deus não criou uma cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta hebreu "o que é política?", ele nos responderia: 'A arte da jardinagem aplicada às coisas públicas'.

O político por vocação é um apaixonado pelo grande jardim para todos. Seu amor é tão grande que ele abre mão do pequeno jardim que ele poderia plantar para si mesmo. De que vale um pequeno jardim se a sua volta está o deserto? É preciso que o deserto inteiro se transforme em jardim.

A vocação política é transformar sonhos em realidade. É uma vocação tão feliz que Platão sugeriu que os políticos não precisam possuir nada: bastar-lhes-ia o grande jardim para todos. Seria indigno que o jardineiro tivesse um espaço privilegiado, melhor e diferente do espaço ocupado por todos.

Vocação é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria ação. Na profissão o prazer se encontra não na ação. O prazer está no ganho que dela se deriva". 

Esse é, portanto, nosso desejo: que as senhoras e senhores sejam políticos por vocação, não por profissão. Que cuidem de Viçosa como um jardim para todos e não para alguns. O Papa Francisco também ensina que a política “é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum”[3]. Quem trilha esse caminho, ajudar a tornar realidade a Política melhor. E o que é a Política melhor?

Na expressão do Papa Francisco, a Política melhor é aquela que, de fato, ajuda a construir a fraternidade universal, servindo ao bem comum, ou, para usar a expressão de Rubem Alves, cuida do jardim para que seja de todos. Diz o Pontífice:

"Para se tornar possível o desenvolvimento de uma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum. Mas hoje, infelizmente, muitas vezes a política assume formas que dificultam o caminho para um mundo diferente" (FT 154).

E sabemos bem por que isso acontece. A Política Melhor deve ter clareza de que serve ao povo sem cair no populismo. “A tentativa de fazer desaparecer da linguagem esta categoria [povo] poderia levar à eliminação da própria palavra ‘democracia’, cujo significado é precisamente ‘governo do povo’. Contudo, para afirmar que a sociedade é mais do que a mera soma de indivíduos, necessita-se do termo ‘povo’” (FT 157).

As senhoras e os senhores e todos os que acreditam na Política têm a tarefa hercúlea de resgatar o encantamento do povo pela política e a credibilidade dos políticos. Com efeito, recorda do Papa que

"atualmente muitos possuem uma má noção da política, e não se pode ignorar que, frequentemente, por trás deste fato, estão os erros, a corrupção e a ineficiência de alguns políticos. A isto vêm juntar-se as estratégias que visam enfraquecê-la, substituí-la pela economia ou dominá-la por alguma ideologia. E, contudo, poderá o mundo funcionar sem política? Poderá encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política?" (FT, 176)

Compromisso com a ética

Assim, o princípio basilar de quem milita na política por vocação é a ética e o compromisso com ou outro, especialmente, o que está na vulnerabilidade, na invisibilidade. Na política, a ética implica não só saber com clareza a distinção entre o público e o privado, mas, sobretudo, agir no respeito ao que compete a cada uma dessas esferas. “Impõe-se restabelecer uma correta relação entre o que é público e o que é particular, para que a esfera pública não seja administrada predominantemente em função de interesses particulares, mas seja organizada por instituições que permitam efetivamente a participação democrática e a distinção entre o público e o privado”, diz a CNBB[4].

“A política é, por essência, ética, pois se refere sempre à liberdade e, essencialmente, à justiça. Não é mera arte ou técnica de exercer o poder, mas o exercício da justiça pública. Santo Agostinho, muito oportunamente, declarou: ‘Removida a justiça, o que são os reinos senão um bando de ladrões? Sem essa base (a justiça), instala-se a opressão, como a história não se cansa de mostrar’”[5].

Não à política sem amor

A política não deve ser desprovida também do amor. Isso exige reconhecer o outro como irmão ou irmã, no caminho da construção de uma amizade social. Ilumina essa vocação da política a parábola do Bom Samaritano que nos ensina de quem devemos nos fazer próximos para assegurar-lhe a vida.

Diz o Papa Francisco que "um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no ‘campo da caridade mais ampla, a caridade política’. Trata-se de avançar para uma ordem social e política, cuja alma seja a caridade social"[6] 

No entender do Papa, “o amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor. Por este motivo, o amor expressa-se não só nas relações íntimas e próximas, mas também nas macrorrelações como relacionamentos sociais, econômicos e políticos" [7].

Uma vez eleitos para o legislativo municipal, é dever das senhoras e dos senhores empenhar-se na organização da sociedade fazendo com que cada cidadão e cidadã sejam sujeitos da própria história e se libertem de sua dependência. Isso também é atividade do amor político, na expressão de Francisco.

"Um ato de caridade, igualmente indispensável, [é] o empenho com o objetivo de organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não se venha a encontrar na miséria. É caridade acompanhar uma pessoa que sofre, mas é caridade também tudo o que se realiza – mesmo sem ter contato direto com essa pessoa – para modificar as condições sociais que provocam o seu sofrimento. Alguém ajuda um idoso a atravessar um rio, e isto é caridade primorosa; mas o político constrói-lhe uma ponte, e isto também é caridade. É caridade se alguém ajuda outra pessoa fornecendo-lhe comida, mas o político cria-lhe um emprego, exercendo uma forma sublime de caridade que enobrece a sua ação política"[8].

Dever do politico

O que se espera, portanto, dos políticos? Podemos buscar a resposta também na CNBB. “Dos agentes políticos em cargos executivos exige-se a conduta ética nas ações públicas, nos contratos assinados, nas relações com os demais agentes políticos e com os poderes econômicos. Dos agentes políticos, no parlamento, deve-se esperar uma ação correta de fiscalização e legislação que não passe por uma simples presença na bancada de sustentação ou de oposição ao executivo. A relação do parlamento é, antes, com a sociedade que com o poder constituído, no Executivo. Não se pode ir para o mundo da política como quem quer resolver os próprios problemas, mas como quem coloca como objetivo máximo o fazer com que um rosto humano se revele em cada homem e mulher. O agente político, a partir da ética do outro, vai conviver e buscar fazer valer os direitos para os diferentes, não porque são diferentes apenas, mas porque é a sua diferença que constrói a humanidade. É fundamental que se tenha, para todos os que assumem cargos eletivos, ‘a obrigação de prestar contas acerca de sua atuação, garantida pelo respeito dos prazos do mandato eleitoral’”[9].

Defesa de todas as formas de vida

Do agente político espera-se, ainda, um verdadeiro compromisso a vida, manifestada em todas as formas e dimensões, e com a dignidade da pessoa humana, com a promoção e defesa de seus direitos. Este compromisso ultrapassa os limites politico-partidários, a relação situação-oposição (cf. Doc 91, n. 42). Uma prática assim consolida a democracia e abre caminho para a construção de uma sociedade justa. Uma vez eleito, o agente político tem o dever ético de governar para todos e não apenas para seus eventuais eleitores. E isso sem exigir nada em troca.

E aqui cabe abrir parêntesis para reafirmar o que disse Francisco na Encíclica Laudato Si. Não existe uma vida humana separada da vida da natureza. Tudo está interligado de tal forma que

"Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque ‘em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza’"[10].

Quando falamos da vida em todas as suas formas, diz Francisco,

"nunca é demais insistir que tudo está interligado. O tempo e o espaço não são independentes entre si; nem os próprios átomos ou as partículas subatómicas se podem considerar separadamente. Assim como os vários componentes do planeta – físicos, químicos e biológicos – estão relacionados entre si, assim também as espécies vivas formam uma trama que nunca acabaremos de individuar e compreender. (...)

Quando falamos de ‘meio ambiente’, fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isto impede-nos de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos. As razões, pelas quais um lugar se contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade[11].

Participação popular

Outro compromisso dos eleitos é assegurar a participação do povo na elaboração e execução das políticas públicas. A Constituição Cidadã garante esta participação, nem sempre observada pelos gestores públicos. Os Conselhos são um espaço um espaço privilegiado de participação popular. Ao executivo e ao legislativo, em qualquer nível, não é permitido apropriar-se desses Conselhos ou fazer deles um mecanismo de barganha para alcançar seus objetivos, politizando-os numa descaracterização de sua função original. Da mesma forma não cabe ao executivo cercear as atividades dos Conselhos ou prescindir deles para “distribuir as ações públicas a seu critério e a critério de seus redutos eleitorais”[12].

Sonhar juntos

Finalmente, permitam-me uma exortação: sonhemos juntos uma sociedade justa e fraterna. Urge compreender que, na comunidade política, podemos ser adversários, nunca inimigos. Isso faz toda a diferença, tanto na campanha eleitoral quanto no exercício dos mandatos para os quais os candidatos são eleitos. Sonhar juntos não é uma utopia quando crescemos na consciência de que somos irmãos e irmãs, com nossas divergências e diferenças que revelam a riqueza da pluralidade que caracteriza a sociedade humana.

Animem-nos em nosso sonho as palavras do Papa Francisco:

"Precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos! (…) Sozinho, você corre o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos. Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos"[13].

Boa campanha para todos e todas! Muito obrigado.

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[1] Presbítero da Arquidiocese de Mariana e pároco da paróquia São João Batista, em Viçosa. Texto proferido no encontro com  candidatos/as a vereadores/as em Viçosa promovido pelas quatro paróquias de Viçosa e pela Capela da UFV.
[2] Cf.: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1905200009.htm. Acessado em 9.9.24
[3] Fratelli Tutti, n. 180
[4]CNBB. Ética: Pessoa e Sociedade, n. 132
[5] Idem, n. 134
[6] Fratelli Tutti n. 180
[7] Idem n. 181
[8] Idem n. 186
[9] Idem n. 40.
[10] Laudato Si, n. 117.
[11] Idem nn. 138 e 139
[12] Idem n. 56.

 
[13] Fratelli Tutti, n. 8.